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O analfabeto midiático

CELSO VICENZI
136 páginas, 2016
ISBN 978-85-60716-19-7
Prefácio de Francisco José Castilhos Karam

Celso Vicenzi é jornalista, trabalha com assessoria de imprensa e colabora em vários portais de informação nas redes sociais. Em sua longa trajetória, atuou em rádio, TV, jornal e revista e recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo (Ciência e Tecnologia), em 1985. Publicou o livro de humor “Gol é orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso (Ed. Unisul, 2010).

 

Vive em Florianópolis, Santa Catarina.  

Foto de Sérgio Vignes

Uma crônica de O analfabeto midiático

À MEMÓRIA DO MENINO AYLAN

 

        Peço emprestado a Edvard Munch O Grito e a expressão de horror, angústia e aflição que desde 1893 impregna, com suas turbulentas cores, a consciência universal.

     Convoco Pablo Picasso, com todos os seus pincéis, para lançar tintas em uma nova Guernica e denunciar o mar de corpos a boiar num líquido cemitério em águas do mar Mediterrâneo.

      Clamo por Castro Alves, para que pegue novamente a pena para escrever sobre esses infaustos navios de desesperados imigrantes, frágeis e superlotadas embarcações que empilham escravos de um tempo de novas infâmias e violências, 500 anos depois daqueles navios negreiros chorados em versos que nos parecem tão atuais: “Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura... se é verdade / Tanto horror perante os céus?! / Ó mar, por que não apagas / Co’a esponja de tuas vagas / De teu manto este borrão?... / Astros! noites! tempestades! / Varrei os mares, tufão!”

      Que levante-se Candido Portinari e sua Criança Morta nos braços maternos de uma família de retirantes. Quem vai consolar e pintar a dor de Abdullah Kurdi, o pai que chora a morte da esposa Rehan e dos filhos Galip e Aylan, o pequeno, que não pôde sequer segurar nos braços e que veio terminar a sua jornada de esperança no embalo das ondas, na beira do mar.

      Diria Fernando Pessoa, quem sabe, como um insuficiente réquiem: “A morte chega cedo, / Pois breve é toda vida / O instante é o arremedo / De uma coisa perdida.”

      Seria Dante Alighieri capaz de descrever este outro inferno, da infância de Galip, Aylan e tantos meninos e meninas, vivida sob um céu de aviões a despejar bombas sobre a terra? Medo e terror no pátio de casa, o pão de cada dia servido em meio à fúria e ódio, que deixam um rastro de escombros e ruas amontoadas de cadáveres. “Oh, quão insuficiente é a palavra e quão ineficaz.”

       Teria chegado a hora de Pieter Bruegel pintar novamente O Triunfo da Morte? “A indesejada das gentes”, como a designou Manuel Bandeira, já computou mais de 2.500 imigrantes mortos por afogamento ou sufocados em porões de barcos, exército de esqueletos a atormentar a opulência de um mundo tão cruel e desigual.

       Até quando o homem será o lobo do homem, como assinalou o dramaturgo romano Plauto? Até quando as lutas sem tréguas pelo poder irão renovar o mito grego de Cronos, que come os filhos após o nascimento por temer que eles lhe tomem o trono? Francisco Goya deu sombrios traços a essa lenda em Saturno Devorando um Filho.

        Quantos filhos a máquina de guerra das grandes potências ainda haverá de devorar, no conturbado xadrez geopolítico das primaveras que prometem democracias que nunca florescem e que terminam por irrigar com muito sangue o solo de tantas pátrias mais madrastas do que mães gentis?

     “Tiveste sede de sangue, e eu de sangue te encho”, profetizou Alighieri antes das desastradas intervenções militares na Líbia, Iraque, Afeganistão, Mali, Iêmen, Síria...

      Não, não é uma "crise migratória", como noticiou um jornal. É uma crise humanitária, da falta de solidariedade, da omissão, da desigualdade social, da disputa pelo petróleo (canhões e ogivas a serviço dos interesses do capital), da interferência de religiões na vida política, dos embates tribais e étnicos.

       Não, isto também não é uma fatalidade. É o resultado de relações desiguais entre seres humanos, países, ideologias, em que afloram a opressão, a discriminação, o preconceito, a ganância e o ódio ao semelhante.

       Rehan, Galip e, sobretudo, você, pequeno Aylan, perpetuado em milhares de pixels no abandono de uma praia onde não poderá brincar, como tantas outras crianças. Carlos Drummond de Andrade teria que refazer o poema: “É só um retrato, mas como dói!”

      Convido, por fim, outro poeta, John Donne, e encerro. “A morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis porque nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim.”

 

          Setembro de 2015

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